Salvar como rascunho

27 junho, 2014

Olá tia,

Escrevo-lhe este e-mail porque sei que se preocupa comigo e porque eu não dou notícias regulares. E isso não acontece por eu me esquecer ou por não querer partilhar a minha vida, mas simplesmente por não querer preocupar ou incomodar.

O silêncio é mais fácil, aquilo que se deixa calado tem menos força e menos impacto. Mas escrevo-lhe hoje porque não consigo mais acreditar nessa ideia. 

Não quero entrar em pormenores, em detalhes, em discursos mirabolantes da minha vida, do que eu faço ou do que sinto. Mas a verdade é que não me sinto bem, não me sinto saudável. Mais que tudo, sinto uma inquietação tremenda.

Talvez seja absurdo explicar por palavras o que é sentir se no ponto de exaustão. As lágrimas sempre a serem silenciadas, mortas ainda antes de nascerem nos olhos. O meu corpo que não se quer levantar mais…e a minha resistência, cada vez mais pequena, aos desafios da vida.

Eu bem que sei que tenho pouco que me queixar. Não sou órfão, não tenho deficiências físicas ou mentais e entrei nas aventuras que quis, estiquei a corda várias vezes e como dizem os meus amigos vou-me 'safando sem saber como’. 

Mas estou cansado. Estou tão cansado e estou tão cansado há tantos anos. Sinto-me absurdamente sozinho, absurdamente longe de tudo e todos. E estas coisas, estes sentimentos não são de agora, não se prendem com as situações e circunstâncias que venho a atravessar. 

Como se fosse uma gripe mal curada que vem e vai mas nunca morre. É um sofrimento constante e é como se não tivesse ninguém para falar sobre isto. Os meus amigos não me compreendem. Dizem que não sou infeliz, que sou apaixonado pela infelicidade e que me rodeio de sensibilidades idiotas. Mas eu não compreendo a diferença em ser infeliz e gostar da infelicidade. Até porque afinal, no fim a conclusão é a mesma. Onde não há luz, há escuridão. E isto com velas ou candeeiros. 

E talvez o pior tudo, é que nada disto pode ser dito aos meus pais. Nada disto eu posso comentar. O meu pai…o meu pai é um grande homem e sem ele as coisas seriam mais que insuportáveis mas ele é também alguém com uma falta de compreensão profunda. O meu pai não percebe e preocupa-se. O que não me ajuda nem a mim, nem a ele. Não posso falar disto porque não há abertura para eu ser franco com o meu pai. 

A Tia bem sabe, na nossa família as tristezas vivem-se no conforto privado das nossas solidões. A minha avó era um bom exemplo disso. Como era a Tia Avó. Como eu sinto que a Tia é. Como eu sou. 

E isto sem falar da minha outra família, a minha outra tão igualmente distante realidade. A minha mãe é ao mesmo tempo sintoma e doença. Aos quase 60 anos vive tão perdida como sempre, e pior do que isso, vive a tentar que eu me perca com ela. As chantagens emocionais acontecem de mansinho, com sugestões mais do que com ameaças. No retrato que a minha mãe faz de mim, aparece um filho ingrato, mimado e exigente. Um filho que nunca liga, que nunca lembra, que nunca ama de volta.

Mas como é que eu posso permitir-me a amar alguém que me deixava horas a fio sozinho? Que me chamava de gordo, de feio, de elefante. Que dizia ser eu a causa de todos os problemas. A minha mãe, sempre lá para criticar e mal dizer. Mas nunca na fila da frente nas festas do colégio. Nunca a aplaudir nas conquistas (quando ainda havia conquistas na minha vida).

Demasiadas foram as vezes em que vi os meus colegas a saírem dum palco para irem abraçar os pais e demasiadas foram as vezes em que fiquei sozinho a olhar para cadeiras vazias. 

E porque é que isto me afecta tanto aos 21 anos? Porque é que volto a uma altura em que eu não tinha sequer consciência? Volto ao passado para tentar compreender o presente, como se olhasse para cicatrizes e tentasse lembrar das agressões. E não chego a lugar nenhum.

Sinto, verdadeiramente, que não devia escrever estas coisas, que não devia mencionar estas coisas. Que me faço de coitadinho, que me faço de inocente. A verdade é que não sou nenhuma dessas coisas. Sou provavelmente a maior desilusão da vida da minha mãe. Mais que o casamento, mais que a família dela, mais que a falta de esperança, um filho que diz ‘és uma cabra, mãe’ (mencionando os termos mais agradáveis) não pode ser uma pessoa positiva na vida de alguém.

Mas precisava muito de soltar estas coisas todas, de dizer que não durmo ou que não consigo acordar, que estou sozinho e que me sinto triste. E que precisava de dizer isto a alguém que é do meu sangue, porque mesmo depois de anos de negação, eu preciso duma família.  De alguém que perceba o retrato porque conhece os retratados. 

Agora, não escrevo estas coisas para a preocupar. Não quero, nem preciso, de nada material ou virtual. Não quero que se sinta ansiosa por minha causa, não quero ser uma dor de cabeça adicional. 

Peço-lhe porém, sem cerimónias, a sua completa confidência. Os meus pensamentos e as minhas experiências magoariam outros, mais do que ajudariam em qualquer coisa. 

Só queria mesmo desabafar e libertar as palavras. E eu preciso de saber que posso contar consigo para ouvir, para compreender…e sobretudo para confiar. Não são segredos. Mas são confidências que faço a alguém que eu sei que pode compreender e que na cabeça de outrem poderiam ser devastadoras. 

Sigo como sempre, de cabeça levantada. Vou sempre tentando, mais do que tudo, vou tentando lutar. Mas, nem todos os momentos são tardes no café a comer bolos com a minha tia avó. Ultimamente, os dias são mais um constante estalo na cara de que tudo isso passou. 

Espero que esteja tudo bem consigo e que os dias sejam de sol por aí. Afinal, o verão é para todos. 


Um abraço com saudade do sobrinho,

Preciso de apagar

17 junho, 2014

Lembrei me hoje da minha mãe. A minha mãe sempre foi uma pessoa ansiosa. Uma pessoa incapaz de lidar com o mundo à sua volta, que inventa fantasmas atrás das portas para não ter que as abrir.
Dizia-me muitas vezes:
-Estou cansada, preciso de apagar.
-Doem me os dentes, preciso de apagar.
-Tive um dia mau, preciso de apagar.

E apagava. Apagava horas a fio, presa a cama. A minha mãe nunca foi uma adulta feliz. E eu sempre detestei isso nela.

Agora a minha mãe sou eu.