Dimensões Algarve I

15 março, 2012

Parte 1
Ontem, depois de um dia feliz de existência - as coisas materiais sempre me ajudaram a combater o vazio dos sentimentos - deitado na cama, o barulho da rua recta lá fora, o ressonar do meu pai no quarto ao lado, e eu de olhos abertos na luz do candeeiro, o Mrs Dalloway aberto ao meu lado sem ser porém lido e encarei o meu armário por momentos.
E, do nada, com se eu próprio tivesse entrado numa dimensão nova de realidade, sangue jorrava do meu armário. Primeiro umas gotas, nem sangue era, era água que corria vermelha, que pintava o armário. E eu de olhos postos sem me mexer, eu e ali com a luz do candeeiro a bater-me no rosto. Não tremi, não me assustei. E mais sangue saía. O armário mexia agora violentamente, o sangue era quase como uma fonte a jorrar.
Nesse momento, as portas abrem-se e uma criatura pula do armário para cima de mim. Não houve tempo para falsos pensamentos sobre a vida ou sobre o que tinha feito. O monstro em cima de mim não teve dúvidas ou pena e começou a comer-me, a rasgar-me a pele, a furar-me os olhos. E eu sem fazer nada, caído na cama como cadáver antes de morto a ser devorado pelo monstro.
Nem uma lágrima me lembrei de deitar, embora tivesse pena de não ter fumado um último cigarro...

Parte 2
Passeava por Faro. Outra vez Faro, como sempre Faro. E andava a descer pela grande avenida do Liceu e passei por uma café.
"Pois. Ou então levo-a para o canil e eles matam-na. Mas isso era chato."
E pensei. Bolas, era bom que isso pudesse acontecer connosco, humanos. Ele está perdido na vida, não tem ninguém. Vou tentar arranjar solução mas posso sempre levá-lo ao canil e eles matam-no. Embora seja chato. Ter um sítio para ir quando se está perdido. Ter um lugar para acabar com as coisas quando as coisas já estão de sua maneira acabadas mas perpetua-se o respirar inútil e penoso. Ter uma solução, enfim uma resposta. Ter algo palpável, uma escapatória.
Fazer do corpo um retrato da alma.


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